terça-feira, 2 de dezembro de 2008

PARA MEU AMIGO SECRETO SANDRA RIBEIRO





Cabra Sem-Cabeça
Por seu amigo secreto


Açúcar, leite, alface, pão, mussarela, ração de cachorro. Uma compra rápida. Adentrou-se no mercado á passos ágeis, sem pensar em mais nada. Levando o menor modelo de carrinho disponível, não demonstrava nenhuma emoção no rosto. Neste instante, uma linha de pensamento mecânica e prática dominou a cabeça de Samuel, e preocupações fúteis como a formalidade de suas roupas ou a atenção de possíveis conhecidos foram deixadas de lado, para a concretização de um fim maior: cumprir seu dever. O que mais queria nesse instante era riscar a maldita lista de compras e voltar logo para casa. Todas as suas funções sensoriais estavam concentradas nisso. Frustrado, não conseguia limpar as últimas lembranças da mente. Era tarde da noite, e ele chegará exausto do serviço, mesmo assim - sem clemência - foi imediatamente expulso do aconchego da residência e obrigado a mais uma vez suprir a fonte de produtos industriais que acabará de esgotar. Deu meia-volta e retornou para dentro do veículo, o mesmo de onde saíra minutos antes. Indignado, porém sem opção, seguia em frente, dilacerando as prateleiras com os olhos.
- Isso que dá se casar...
Seu ódio se expandia, queimando mentalmente aquele supermercado nos limites da cidade, que além de ser demasiadamente longe, quase na zona rural do município, ficava aberto 24 horas por dia, e, mesmo se visse obrigado á fazer compras na ascensão da madrugada, não haveria desculpa. Logo, até mesmo as pessoas ao redor lhe revoltavam. Crianças corriam e gritavam pelo corredor enquanto suas mães reclamavam dos preços e punham o assunto em dia; um homem de boné e casaco tentava ocultar algumas mercadorias nas vestimentas; uma velhinha comentava sobre o estranho cão que acabou de atropelar no estacionamento; um casal de universitários discutia o Planalto e o futuro da nação; entre outros acontecimentos. Esforçou-se para ignorar os ruídos ambulantes que lhe cercavam e continuar o que estava fazendo. Apressado, não demorou para encher o carrinho.
No lado de fora, bem de frente ao estabelecimento, dois sujeitos vestidos de preto aguardavam num carro.
- Olhe, acho que agora já está bom, vamos acabar logo com isso.
- Calma, não é o momento certo.
- Você está esperando o quê? Eles fecharem?
- Apenas tenha paciência. Minha peça ainda está incompleta. Se formos agora não será divertido.
- Huf! Não sabia que era pra ser divertido.
- Vai por mim, está tudo sobre controle. Pode cochilar um pouco ai no banco, eu te aviso quando estiver pronto.
- O.K. então, se você está dizendo...
Passa alguns segundos e a movimentação pouco muda. Eles permanecem no carro.
- Você viu aquela velhinha barbeira agora pouco? – comentou, tentando fazer o tempo passar - Ela atropelou alguma coisa quando entrou...
- Agora! – gritou subitamente o outro - O mendigo acabou de entrar. A hora perfeita... Chega de papo, vamos agir.
- Hum...
Os dois cobrem as faces com máscaras e sacam espingardas. Citam um trecho do Pai Nosso e saem do veículo, na direção da entrada.
- O que tem de mais o mendigo?
- Hum... Mendigos sempre me dão sorte.
- Ah...
Samuel já estava á caminho do balcão. O gosto da discussão ainda em sua boca.
- Querida, está tarde e eu estou muito cansado. Eu juro que amanhã de manhã vou passar no mercado antes do serviço, mas agora não dá.
- Você não me ouviu? Eu disse que preciso dessa lista agora. Porque sempre enrola antes de cumprir com o dever? Para o tal "homem da casa" você é muito frouxo.
- Olha, eu não fico dormindo no trabalho ou andando em cima das colegas como você pensa. Eu dou duro para manter o que nós temos.
Ela deu de costas.
- Vá logo. Na sua agilidade, pode ser que o supermercado 24 horas feche antes de chegar.
Uma sensação desconfortante circulava por suas veias. Era incrível como simples frases podiam incomodar tanto. Nunca compreendeu o que se passava com sua esposa: ela adquiriu um comportamento insuportável alguns meses depois do casamento. De qualquer jeito, logo, logo aquela história estaria encerrada, e ele poderia finalmente dormir. Parou um estante para refletir se não se esquecera de algum detalhe. De repente, ouve disparos.
Um individuo mascarado, de porte robusto, avançava na direção dos caixas, mandando chumbo grosso pelos ares.
- O primeiro #@!% que se mexer morre!
Logo atrás dele, parado no mini-saguão, outro homem armado agia de modo diferente, bem mais tranqüilo.
- A atenção de todos, por favor – disse o mesmo, com a voz serena de um médico, mas a visão de seu companheiro gritando e apertando o cano da arma no rosto de um balconista rebalanceou a cena – Eu sou Leonardo Da Vinci, e meu amigo aqui é Pablo Picasso, e isso aqui é um assalto.
Podiam ouvir perfeitamente, graças as dimensões relativamente pequenas do estabelecimento. A clientela contorcia-se de medo. Sem rotas alternativas para correr, apenas lhes restara o pânico. Da Vince, que permanecera imóvel até o início do furto, empunhou a arma e avançou como um relâmpago pra cima dos reféns. Usando da agressividade e intimidação, ordenhou todos como se fossem ovelhas.
- Vamos jogar um jogo – disse Leonardo, sádico – Observei que o pessoal está um tanto desconfortável com a atual realidade, então vou aliviar um pouco o estresse. A brincadeira se chama Cabra Sem-Cabeça, e é bem simples: os participantes, ordenados pelo mestre, têm que se deitar no chão, de barriga para baixo e mãos na cabeça, que nem nos seriados policiais. Devem permanecer neste estado até que o mestre os libere. Quem fizer algum movimento brusco ou levantar a cabeça antes do período determinado perde os miolos.
Em milésimos de segundo, todos estavam no chão. "Esse cara anda assistindo muito filme de ação", pensou Samuel, "Estamos ferrados na mão desse maníaco".
- 1, 2, 3, já! A brincadeira tá valendo.
Ele mirava atentamente para aquele aglomerado de corpos jogados no piso, o indicador no gatilho, parecendo ansioso por uma desculpa para atirar. As mães desesperavam-se ao tentar explicar aos filhos a situação delicada que se encontravam. Entre gritos e choramingos, o assaltante parecia perder cada vez mais a paciência. Picasso estava no penúltimo caixa, já aquecendo as pernas para a fuga. De repente, um baque agudo transgride a sonoridade do mercado. Todos paralisam-se por alguns segundos. Parecia ter sido emitido por algum tipo de animal, ou algo assim. A histeria aumenta. Um senhor de termo agarra o crucifixo em seu bolso e começa á rezar o terço. Subitamente, o mendigo de agora á pouco surge, correndo insanamente pelos corredores.
- Fujam! Salvem suas vidas! – gritou ele – todos estão em perigo.
Picasso tenta atingir o fugitivo, mas erra, e o sem-teto consegue escapar. Da Vince fica desnorteado por um tempo, mas logo detém o comando.
- Picasso, largue essa mala de dinheiro e vá checar o que está acontecendo lá atrás.
- O quê? Para de ser idiota, já temos o dinheiro, vamos embora.
- Pare de bancar o esperto. Tem algo atrapalhando o segmento da minha operação e eu quero saber o que é. Vamos logo...
Pablo deu-se por vencido e foi checar. Atravessou o mercado, o suspense crescendo á cada passo. Logo, viu-se frente a frente com a imagem mais grotesca de toda a sua vida. No final do corredor de lactobacilos, aos pés do vidro do açougue, um ser distorcido alimentava-se da carcaça de um suíno recém-descongelado. As entranhas do animal eram lançadas para longe, enquanto um grande canídeo de pelagem negra banqueteava-se ferozmente com os órgãos internos. Um verdadeiro frenesi. Tinha o porte de um Rottweiler, de focinho comprido e físico deformado; seus dentes cortavam a carne como serras. Uma placa de ferro parafusada em seu rosto ocultava seus olhos, e crescia musgo em seu pelo; seguido por ataduras imundas que cobriam as patas. Aquela figura poderia ter saído de um quadro surrealista, ou mesmo enviado dos portões do Inferno. Explicação plausível não havia.
- É o cachorro! – disse a velhinha – Ele está vivo!
- Mais que *#@$ é essa? – questionou Da Vince do outro lado do supermercado.
Instintivamente, Pablo empunha a arma e mira contra a criatura. A encara diretamente no rosto, segurando o gatilho mais firme do que nunca. Inesperadamente, Picasso abaixa a espingarda, a ponto de deixá-la cair no chão. Desabou-se de joelhos e se pos a chorar. Aparentemente, sua mente frágil não conseguiria digerir aquilo tão facilmente.
- Mas que droga – exclamou o outro assaltante-artísta.
O criador da Mona Lisa avança destemido na direção da aterradora presença.
- Você não ouviu, amiguinho? Estamos jogando Cabra Sem-Cabeça, e você deveria estar deitado agora.
Da Vince dispara. O projétil transpõe o peito da fera, a arremessando contra o vidro do açougue. O alvo cai agonizando em uma possa de sangue. Leonardo solta um ligeiro sorriso, e vira-se para o resto:
- Bom, onde estávamos mesmo?
O fora-da-lei caminhou suavemente na direção dos caixas, tentando esconder a glória que sentia por dentro. Á primeira chance, a maioria dos reféns tinham aproveitado a distração para fugir.
- Levante-se Picasso, não temos tempo para crises emocionais agora.
Sentiu algo se aproximando pela retaguarda. Virou-se, engolindo em seco. O cão, mais vivo do que nunca, acelerava furiosamente na sua direção; as garras chicoteando o pavimento. Em uma esquiva rápida, escapou para o outro corredor, quase tendo o braço abocanhado. Equilibrou-se com dificuldade e olhou ao redor: nenhum sinal do canídeo. Não conseguia mais ouvir as passadas estridentes. Reparou que gotas de suor desciam sobre seu rosto e seu corpo estava tremulo. Nos seus 12 anos de subsistência criminal, foi a primeira vez que algo assim aconteceu. Já tinha trocado tiros com a policia, já tinha enfrentado donos de lojas heróicos, já tinha encarado outros assaltantes que não estavam na folha de pagamento, já tinha sido preso. Era essa sua vida, era isso que sabia fazer. Mas hoje, como á muito tempo não ocorria, Leonardo não fazia idéia de como prosseguir.
Seguiu á caminho da saída – certamente o plano tinha falhado – aumentando o ritmo da locomoção, ansiava em abandonar aquele ambiente hostil. Surge um objeto inesperado em seu percurso.
- Você não deveria atirar nas crias de Deus... – repreende a velhinha.
Um som familiar esgueira-se á sua direita. A criatura imerge de uma pilha de biscoitos; uma língua reptiliana projetava-se para fora de sua boca, saliva escorrendo tal fosse água de nascente. Mais uma vez, uma outra investida. Da Vince, depois de processar rapidamente as opções em sua cabeça, agarra a velhinha e a usa como escudo.
- Vamos ver quantos reféns você consegue comer antes de eu estourar seu cérebro – disse, enquanto mirava pelos ombros da senhora.
Repentinamente, uma garrafa de champaign atinge com força a nuca do criminoso. Samuel agarra o braço da idosa e a tira do caminho. Leonardo nem tem tempo de recobrar a consciência, quando se dá por si, uma monstruosa mandíbula fecha-se em volta de seu pescoço.
"A primeira vez que perco uma partida de Cabra Sem-Cabeça".
Samuel põem a velhinha nas costas e corre para fora dali. Sai queimando pneu pela pista, se esquecendo completamente das compras. Depois daquela noite, tudo prosseguiu normalmente. O fato foi dado como o ataque de um cão raivoso. Houve mais alguns relatos da criatura, que espalhou o terror em um petshop próxima dali, além de dizimar completamente uma criação de gado poucas semanas depois. Eternizou-se como uma lenda urbana da região. Da Vinci sobreviveu milagrosamente, graças á um colete modificado que levava por baixo da roupa, e continua assaltando centros comerciais ao lado de Picasso.
Samuel, depois de tentar várias terapias de casal, se entendeu com sua esposa.


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>> Um ótimo final de ano Sandra, e boas festas!!

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